Mochilão América do Sul – Dia 27

Dia 27 – 09/05/12 – 4ª-feira

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Para ouvir:

Manu Chao – Clandestino

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Viajamos por toda a noite e chegamos a Rio Gallegos de manhãzinha. Cafezinho na rodoviária e vamos até um posto de gasolina, a umas cinco quadras do terminal. A estratégia é a mesma. Sophie fica com o dedo levantado enquanto eu peço carona pros caminhoneiros que estão abastecendo. Volto pra junto da Sophie depois de alguns minutos. O lugar é bom, na pista local ainda dentro da cidade, onde todos passam relativamente devagar. Ainda é bem cedo, temos bastante tempo. E faz muito frio. O vento castiga o rosto e o dedo, únicas partes do corpo descobertas. Muitos carros e caminhões passam. Nenhum para. Está difícil. O ideal seria se parasse um carro. Mais rápido e confortável. Quase! Um belo e grande caminhão-baú encosta. É um tiozinho de Santiago que está indo até Punta Arenas, também no Chile. Diz que podemos ir com ele até lá ou, se quisermos, descer antes na Ruta, atravessar o Estreito de Magalhães de graça e pegar outra carona até Rio Grande ou Ushuaia.

Mário não parece um caminhoneiro. Sabe conversar, é mais esclarecido, fala um pouco mais sobre política e economia. A viagem é mais agradável. O céu não tem nuvens, nenhum sinal de chuva. Um dia lindo! De novo, vou sentado na cama, bem no meio, e Sophie no banco do passageiro.

Vemos um comando policial à frente. Mário pede pra eu me esconder na casa, atrás da cortinazinha que dá privacidade a ele quando vai dormir. Sophie não entende nada, me olha assustada. A policial pede documentos, Mario desce, conversa, mostra toda a papelada. Tudo certo, ele volta e partimos. Explico à Sophie que não é permitido viajar sentado na cama, estamos ilegais. Ela arregala os olhos, assustada. Deve ser a primeira vez que faz algo fora da lei, principalmente viajando.

Chegamos à divisa com o Chile. Sim, para ir à Terra do Fogo, mesmo na parte argentina, é preciso passar pelo Chile. Temos que descer do caminhão para carimbar o passaporte, preencher formulários, passar a mochila pela máquina de raios-X. Mário está esperando a gente do outro lado. Mudaram os países, nada mudou. Mesma paisagem desértica. Mais umas horinhas até chegar onde vamos descer. Preferimos não ir até Punta Arenas, melhor parar antes e já chegar à Terra do Fogo.

São 16 km até a balsa pra atravessar o Canal de Magalhães. Antes de despedir, Mário me passa seu e-mail, diz para avisar quando eu voltar pro norte. Se ele estiver aqui embaixo, vamos juntos. Legal, boa viagem!

Começamos a andar pela estradinha que vai até a balsa. Não tem praticamente nada em volta, exceto duas ou três casas vazias. Lá longe, na Ruta, algo parecido com uma fábrica. A atividade petroleira é intensa por aqui. O vento está congelante. Imagino que em duas horas vai escurecer, estamos no meio do nada.
Sophie é o desespero em pessoa. Lamenta, reclama, diz que deveríamos ter ido até Punta Arenas com Mário. É, viajar sozinho realmente tem seus pontos positivos.

Uma caminhonete vem pela estradinha e entra em uma das casas, onde tem uma criação grande de ovelhas. Vou até lá, pergunto se vão até a balsa e se podem nos levar. Dois caras dizem que tenho que falar com o patrão. Está lá no meio das ovelhas, entretido. Desisto de falar com ele, volto pra estrada. Minha sugestão é que voltemos à Ruta 3, pelo menos lá podemos conseguir carona até Punta Arenas ou qualquer outro lugar. O importante é sair daqui. Damos alguns passos e uma caminhonete sai da chácara. Paro o motorista pra perguntar se pode nos levar até a balsa. Diz que vai buscar uns caras na fábrica e, quando voltar, nos ajuda. Ficamos esperando na estrada. Passam pouquíssimos carros e quase nenhum caminhão. Não param. Lá vem outro. Esse sim. Parou! Vamos juntos. O motorista é um cara mais novo que eu, trabalha aqui transportando petróleo com seu caminhão-tanque. Em cinco minutos estamos na balsa. A emoção de estar na margem do Estreito de Magalhães é grande. Um lanche e um café pra tirar a barriga da miséria. Pronto, podemos atravessar. Ou não. O empregado diz que temos que esperar a próxima. Ficamos esperando. Só há duas. Enquanto uma vai, outra vem. Aproveito pra já pedir carona aos carros e caminhões que estão parados, esperando. Mais uma vez, nada. A próxima balsa chega e não podemos subir de novo. Deixam-na de lado pra ser lavada. Mais meia hora de espera. Finalmente entramos na balsa seguinte. No trajeto até o outro lado, fico de olho no mar. Se tiver sorte, quem sabe aparece uma baleia ou um golfinho. Só vejo um leão-marinho.

Assim que a balsa estaciona, corremos até a estrada pra pedir carona aos carros. Sem chance. Olho em volta. Cadê a cidade que disseram que tinha aqui? Só tem três construções. Uma casa e um mercado fechados, vazios, ambos de madeira, e o centro de informações Bahia Lomas. Está aberto, mas não tem ninguém. Outra balsa chega, mais uma frustração. Nada de carona. Começo a andar, vou pra trás da casa, tiro umas fotos. Sophie me chama, tem uma mulher no centro de informação. Cumprimento e começamos a conversar:

– Oi, tudo bem? Olha só, estamos viajando de carona, queremos ir até Ushuaia. Eu sou brasileiro, ela suíça. Pegamos um caminhão até aqui, pensamos que havia um albergue ou hotel pra dormir, mas não tem nada.
– Ah, aqui não tem mesmo, só o mercadinho ali, que está fechado porque é baixa temporada, e o centro de informação.
– E não tem uma cidade aqui perto?
– Tem Cerro Sombrero, mas fica a uns 30 km.
– Mas não temos como chegar lá, passa ônibus aqui?
– Passa só pela manhã. Tem que tentar pegar carona.
– Estamos tentando, mas tá difícil. Já tá escurecendo, tenho uma barraca mas não aguenta esse frio, e só pra uma pessoa. Não temos onde passar a noite.
– É, aqui não tem nenhum lugar mesmo. Há uns dias, um grupo de pessoas parou aqui, como vocês, e acamparam aqui atrás, mas estava quente. Agora é difícil. Vocês têm saco de dormir?
– Temos, sim.
– Bom, se não importarem, podem dormir aqui essa noite.
– Claro, perfeito!
– Tem calefação, banheiro, chuveiro.
– Tá ótimo. Aí, amanhã tentamos pegar carona ou vamos de ônibus.
– Eu fecho aqui às 21h e abro amanhã às 9h. Tranco aqui quando fechar e amanhã vocês já têm que estar com tudo arrumado quando eu abrir.
– Fechado. A gente vai tentar pegar carona mais umas vezes hoje, vai que conseguimos ir embora.

Com o frio, é impossível ficar lá fora. Não tem por que. A balsa só chega a cada meia hora. Fico aqui de dentro de olho. Quando chega uma, corro lá e peço carona. Uma vez, nada. Duas vezes, nada. Três vezes, nada. Desisto, melhor dormir aqui. Além do deserto, aqui ainda tem o Estreito de Magalhães de onde vem esse vento que parece o sopro do Sub-Zero. Parece reclamação, mas não é. Isso é exatamente o que eu queria quando comecei a viagem. Estar em um lugar sem saber, sem ter ideia do que ia acontecer. Muitos turistas passam pelo Estreito, devem usar o banheiro aqui. Mas quantos tomam banho, assistem a um documentário em uma TV de umas 40 polegadas sobre a migração dos pássaros e a vida dos crustáceos da região, e ainda dormem em um saco de dormir? Imagino que, até agora, só dois.

Mais fotos da carona no Flickr!

Acompanhe a viagem pelo mapa:

~ por rocisman em 19/12/2012.

2 Respostas to “Mochilão América do Sul – Dia 27”

  1. Parece o sopro do sub zero, hahaha. Pior que é isso mesmo, bem me lembro desse vento impiedoso…
    Finalmente comecei a ler e to curtindo bastante o blog!

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